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Quando a justiça corrompe a democracia


Marjorie Marona e Mateus Morais Araújo

A democracia está em recessão no Brasil. Dados sobre satisfação com a democracia e apoio ao regime democrático mostram que estamos em nosso pior momento desde 2002. Segundo a pesquisa “A cara da democracia no Brasil”, organizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, menos de 20% dos brasileiros afirmam estarem satisfeitos ou muito satisfeitos com a democracia, o que representa uma queda de quase 20% em relação aos resultados da pesquisa Eseb de 2014. No mesmo sentido, o apoio à democracia caiu: 56% dos entrevistados afirmam preferir a democracia a qualquer outra forma de governo. Em 2010 eram 77,4%. Isso representa uma queda de 21% em um intervalo de oito anos.

Fonte: (Eseb (2002, 2006, 2010, 2014); IDDC: (2018)

Fonte: (Eseb (2002, 2006, 2010, 2014); IDDC: (2018)

Para entender como se dá essa recessão democrática, é importante trazer à tona as discussões sobre o significado de democracia.

A democracia em sua concepção mais idealizada representa os anseios de justiça de uma determinada comunidade política que estabelece para si própria a meta de que seu destino coletivo seja regido por todos que a compõem, os quais devem ser considerados como dignos do mesmo respeito e consideração (1) . Uma visão mais minimalista, no entanto, acredita que é necessário, pelo menos, garantir-se que nenhuma facção (ou grupo político) tenha tamanho poder que seja capaz de, sozinha, decidir os rumos da comunidade como um todo (2). É dessa segunda visão que se originam elementos que compõem o que todos entendemos como valores democráticos – tais como a separação de poderes e os sistemas de freios e contrapesos.

Daí que o sistema político se organiza pela divisão dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, garantindo-se que um se sobreponha hierarquicamente ao outro, justamente para que nenhuma facção, ao conquistar a maioria de um desses poderes, seja capaz de governar sozinha, fazendo-se accountable perante os demais. Além disso, como não podemos confiar plenamente nos ocupantes de funções públicas, de que todos vão agir corretamente e em cumprimento às leis do país, foram criadas instituições de controle, tais como os Tribunais de Contas e as Controladorias, e atribuídas prerrogativas de controle a instituições que possuem também outros papéis no sistema, tais como o Ministério Público e as Polícias. Tudo isso para que seja possível a fiscalização cotidiana daqueles que lidam com os bens públicos, quer sejam atores eleitos ou não.

Vários trabalhos de Ciência Política têm apontado para um crescimento do papel político dessas instituições de controle, bem como do Poder Judiciário nos últimos anos, o que se relaciona com o aumento da desconfiança nas tradicionais instituições representativas e atores políticos eleitos, na justa medida em que são reveladas práticas ilegais/ilegítimas (3). O aumento da desconfiança e da insatisfação com os regimes e instituições democráticas, associado ao crescimento da importância das instituições de controle (contra-democráticas, para usar a expressão de Rosanvallon) culminou, em anos recentes, em uma recessão democrática (4). O Brasil não está sozinho no desafio de lidar com esse problema, mas configura caso exemplar, como os dados sobre a confiança e avaliação da Justiça e do Ministério Público, explorados abaixo, indicam.

Nos últimos quinze anos, no Brasil, o fortalecimento das instituições de controle se deu de forma extraordinária. Particularmente, a revolução institucional pela qual passou a Polícia Federal, para usar a expressão de Rogério Arantes (5), associada ao aprofundamento da autonomia do Ministério Público, já amplamente garantida pelo constituinte, conforme aponta Fábio Kerche (6), revolucionou o combate à corrupção no Brasil. Mas politizou a burocracia.

Atualmente, quase metade da população brasileira (47,8%) aponta o problema da corrupção como uma justificativa para o estabelecimento de um regime militar, enquanto altos índices de desemprego (25,6%) ou uma situação de convulsão social (25,7%) sensibilizam pouco um mais de um quarto dos brasileiros, naquele mesmo sentido. Contudo, a estratégia de combate à corrupção, que atingiu o ápice de sua institucionalização com a Operação Lava-Jato, ameaça a própria ordem democrática, no Brasil, pela atuação de uma coalização majoritária que atua no interior das instituições judiciais, na medida em que se afirma no descrédito generalizado dos políticos eleitos, seus partidos e tradicionais instituições representativas.

Note-se que os índices de confiança na justiça brasileira acompanhavam o padrão da variação dos índices de satisfação com a democracia até recentemente. A partir de 2013/2014 a confiança com a justiça se desincompatibilizou da satisfação com a democracia, estabilizando-se, enquanto a avaliação positiva do regime seguiu na descendente, associada a péssima avaliação dos congressistas.

O Congresso brasileiro chegou, em 2018, ao pior nível de avaliação por parte dos brasileiros desde 2002: o desempenho de senadores e deputados federais é avaliado como “ruim” ou “péssimo” para 76,1% da população. Em 2014, a porcentagem era de 30,8%. E as explicações não são apenas de natureza econômica, como tradicionalmente se pensa. Os dados indicam uma rejeição geral às pessoas identificadas como políticos, o que pode estar ligado, justamente, à percepção sobre a corrupção no universo político: 40% dos entrevistados afirmam que a “corrupção” é o mais grave problema enfrentado pelo país.

E são as instituições judiciais e quase-judiciais – Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal – as protagonistas do processo de erosão da democracia, de onde têm retirado a sua força pela estratégia de combate à corrupção que avançam, francamente apoiada por um segmento da população. A confiança no Poder Judiciário é maior dentre aqueles brasileiros que se identificam ideologicamente à direita do espectro político: 41,8%, contra 32,7% dos que se dizem de esquerda.

E, embora os brasileiros, de um modo geral, apontem para a politização da justiça, a percepção acerca da neutralidade política do Poder Judiciário é também maior nesse grupo: 32,9% dos que se identificaram como de direita apostam que as decisões do judiciário não são influenciadas por políticos, empresários ou outros interesses, contra 29,6% dos brasileiros de esquerda. A atuação dos juízes é melhor avaliada dentre os brasileiros autodeclarados de direita (37,6%), em comparação com os de esquerda (24,6%).

O contraste se amplia quando se trata de avaliar o Ministério Público. Enquanto 40,2% dos brasileiros autodeclarados de direita avaliam que a atuação dos promotores e procuradores é boa ou ótima apenas 26,1%, dos que se declaram de esquerda, concordam com isso. Particularmente, a Operação Lava-Jato, é percebida como uma investigação neutra, que atinge a todos os partidos igualmente, pela maioria dos brasileiros, em todas as faixas de idade, renda e escolaridade. Contudo, o posicionamento ideológico afeta essa avaliação: dentre o grupo de esquerda 49,7% apostam na neutralidade, contra 60% do grupo de direita. Por fim, a condenação do ex-presidente Lula também é melhor avaliada dentre os brasileiros autodeclarados de direita: 51,6% concordam com a decisão, contra 30,1% do grupo de esquerda.

O que parece é que a confiança nas instituições judiciais se desatrelou da percepção acerca da vitalidade do regime democrático e passou, ao contrário, a se alimentar de sua erosão, particularmente pela construção de uma determinada estratégia de combate à corrupção, sustentada por um setor da sociedade brasileira. As consequências mais evidentes são as assimetrias que a justiça hoje é capaz de impor ao jogo político e à competição eleitoral, vide os processos que culminaram com a retirada da presidenta Dilma Rousseff da presidência da República e a prisão do ex-presidente Lula.

Se levarmos a sério a ideia de que a corrupção revela, na sua essência, uma atividade que gera exclusões indevidas, porquanto injustas, estamos mais uma vez diante de um grande escândalo de corrupção: aquele promovido pelo judiciário e instituições correlatas, paradoxalmente, na afirmação de sua agenda de combate à corrupção.

Assista o vídeo da professora Marjorie Marona sobre os dados do survey:

Para baixar o arquivo em pdf, clique aqui.

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1. Dworkin, Ronald. A virtude soberana: teoria e prática da igualdade. Tradução Jussara Simões; revisão técnica e da tradução Cícero de Araújo e Luiz Moreira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

2. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Brasília: UNB, 1984.

3. ROSANVALLON, Pierre. Counter-Democracy. Politics in an Age of Distrust (Cambridge: Cambridge University Press, 2008; NORRIS, P. Critical citizens: global support for democratic government. Oxford, UK: Oxford University Press, 1999; INGLEHART, R.; WELZEL, C. Modernization, cultural change and democracy: the human development sequence. New York, NY: Cambridge University Press, 2005; FUKS, Mario; CASALECCHI, Gabriel Àvila e; ARAUJO, Mateus Morais. “Are dissatisfied democrats critical? Reevaluating the concept of the critical citizen”. In: Opinião Pública, Campinas, v. 23, n. 2, maio-agosto, 2017.

4. LEVITSKY, Steven e; ZIBLATT, Daniel. How Democracies Die. Nova Iorque: Crown publishers, 2018; DIAMOND, Larry; PLATTNER, Marc. Democracy in Decline? (A Journal of Democracy book). Baltimore: Johns Hopkins University, 2015.

5. ARANTES, Rogério B. Rendición de cuentas y pluralismo estatal en Brasil: Ministerio Público y Policía Federal/Accountability and State Pluralism in Brazil: Public Ministry and Federal Police. Desacatos, n. 49, p. 28, 2015.

6. KERCHE, Fábio. Autonomia e Discricionariedade do Ministério Público no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v.50, n.2, 2007

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